segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Geléia de amora.


Ele acordou, mas não queria, era obrigado por aquele maldito aparato eletrônico que não parava de fazer barulhos, em um gesto rude o moço deu um belo tapa em cima daquele aparelho perturbador e voltou a sua posição inicial.
Não queria sair daquela espécie de refúgio para todos os seus medos, anseios e até mesmo seus próprios delírios, mas não adiantava, não tinha como ignorar o tempo, que passava sem piedade dos mortais... reles mortais, tão dependentes e submissos a Cronos.
Abriu os olhos novamente, olhos..fugitivos do próprio reflexo do espelho, olhos de Dionísio..vá, de Dionísio...assim como certas ações de Enzo, que não deixavam a expressão a desejar.
Sem mais delongas leitor, perdoe-me.
Contradizendo o gesto rude logo ali, espreguiçou-se lentamente, dando melodia aos braços longos, porém finos que davam a beleza da ação, um suspiro rápido deu o ar de sua graça, mas logo acabou junto com seu espreguiçar.
Sentou na cama, com os pés tocando o chão, procurava os óculos em cima da escrivaninha que ficava ao seu lado, e lá estava entre livros e anotações, agora sim as coisas estavam voltando a ter foco, as lentes estavam sujas para variar, mas quem se importa, eram 7 horas da manhã.
Finalmente ele levantou, os cabelos desarrumados davam uma inocência infantil mas os olhos, como sempre eram contraditórios, destilando um certo desprezo pelo alheio, e foi exatamente daquela maneira que deu seus primeiros passos...apanhou seu roupão branco e colocou por cima de uma velha calça cinza, um tanto quanto larga para sua silhueta magra e uma camiseta branca, desbotada pela juventude que já passara.
Enzo teve que se encarar, culpa do espelho ali, escancarado, os olhos como sempre fugiram, passou as mãos pela face, mãos que eram de pianista, belas e fugitivas como os olhos, leitor...perdoe-me pelas repetições...mas existem pessoas que são como contos circulares, isso de maneira nenhuma é ruim, são seres que nos envolvem, nos prendem em suas características tantos psicológicas como estéticas.
Lavou o rosto, doces traços, escovou os dentes, sorrisos raros ele tinha, e em um passo lento foi até a varanda pegar o seu típico jornal, para enfim tomar seu café, comer algumas torradas lendo e tecendo comentários sobre as desgraças alheias, comentários ásperos, como se ele fosse superior as frases e a tudo, o meu medo é concluir que ele realmente acreditava nisso.
Saindo do mundo das idéias, Enzo saiu na rua de roupão como sempre fazia...foi andando até o fim de seu teórico jardim, limite para calçada, pegou o jornal e já foi logo destilando seu mau humor com a pobre de uma velinha que disse educadamente “Bom Dia moço, hoje vai fazer um frio daqueles!” Ele não respondeu, apenas lançou aquele olhar gélido, os olhos diminuíram e o silêncio fez um barulho ensurdecedor, ah como Enzo gostava de ser odiável, creio que era um de seus passatempos.
Agora o passo era rápido e áspero, entrou em casa procurando algum defeito na cozinha, e claro que achou...as torradas estavam todas quebradas dentro do pacote. “Praga daquela velha!” exclamou ele, em um dos típicos momentos de não assumir a própria culpa, resmungando como um casmurro colocou os pedaços em pequeno prato enquanto esquentava a água para o café, era metódico leitor... em demasia.
E foi exatamente como descrevi acima, porém com o incidente das torradas, sentado, com o cabelo ainda bagunçado, as lentes ainda sem foco e o olhar ainda gélido comia os pedaçinhos de torrada com geléia de amora, tomava café e destilava comentários sobre o jornal e o quão ignorantes eram os colunistas e jornalistas.
Assim foi a vida para ele, era como o personagem é para nós: circular. Enzo estava preso em seu próprio labirinto, assim como Dédalo, preso em sua própria construção. Pena, afinal a cor do cabelo de Enzo, os olhos de Dionísio e as mãos fugitivas eram capazes de desconcertar qualquer mortal, se assim fossem vistas.

Ana T, para o garoto.