segunda-feira, 19 de março de 2012

bichos

Os dois sentados na escada, ela fumava um cigarro, ele comentava o clima. O ônibus estava lotado, os olhos azuis do menino destoavam em meio a tanto cinza, ela lia Milan Kundera, e sorria para a criança de cabelos de anjo. Ele ouvia Tom Zé. Eles erravam as palavras, outros brigavam estáticos no trânsito, a moça reclamava das barbeiragens do marido. Luisa esfolava os joelhos pela segunda vez na semana. Chovia na Avenida São João. O garoto roia as unhas compulsivamente, Sabrina chorava escondida enquanto o namorado vendia seguros. Marcela e Carlos deitados na cama, ao som de qualquer vinil cortante, ela dormia, ele a observa incrédulo, - como podia ter passado tanto tempo? O estomago doía, os pensamentos desconexos, como sempre, como sempre. – Talvez dar um tempo. – Dorme dorme, meu pecado, minha culpa, minha salvação. Ele cantarolava Tom Zé. Eram dois bichos machucados, já não filhotes, perdidos e sem rumo, sangrando por ai. Dois bichos machucados, dois bichos zonzos dos mal tratos, cansados do caótico, do nojo e repulsa. Dois bichos machucados, dois bichos que se machucavam constantemente, um machucava o outro, o outro machucava um, abriam feridas, mordiam os arranhões, caiam no chão, rolavam, brincavam como dois filhotes, quase se matavam como dois adultos insuportáveis, pulavam e agora agonizavam na cama.

Dois bichos. Ana e Pedro. Dois bichos desesperados. Dois bichos (in)conformados. Cheirando um ao outro. Dois bichos viciados um no corpo do outro. Dois bichos que se mostravam ferozes quando um terceiro bicho se mostrava interessado. Bichos. Que sangram gritam mordem desesperados e agonizam em praça pública. Em silêncio e com toda discrição, querem manter as aparências. Afinal, são bichos. (?)



domingo, 11 de março de 2012

a waltz for a night

Ler ao som de Bilhetinho Azul - Cazuza

as pessoas são deliciosamente substituíveis.

só é preciso uma dose de tempo

outra, bem generosa, de cachaça

e uma garrafa de coragem.

e se quiser (para garantir o gosto amargo)

acrescente uma pitada de cacos de vidro

talvez

não precise de tanto

sou mesmo um pouco exagerada.

talvez, não precise de nada disso.

nada.

beijos cortantes


não. isto não é um trecho mesclado de culpas.

culpa. culta. culpa. de quem é a culpa? a culpa é de quem?

f0da-se

não tem culpado

existe por si só.

um beijo, bilhete, cheiro, caderno de química, qualquer coisa

some

mas fica.

e dói.

mas passa.

mas fica.

mas volta.

laço que se transforma em nó.

aperta. tortura, mas não mata.


agora rapaz

me faça um favor

esqueça a culpa,

por hora.


me da um abraço curto pra não sufocar

e cai fora de uma vez

pra não dar tempo

de te substituir