terça-feira, 17 de maio de 2011

Farpas de Maio

Inicialmente esse texto era pra ser lido ao som de Eleanor Rigby – The Beatles, mas mudei de idéia, apesar da sensação ser a mesma.

Ler ao som Secos & Molhados - Fala

Era maio, o cheiro de café invadia a cozinha clara, típico, a garota sentada: boina vermelha, óculos, cachos desarrumados e um casaco azul xadrez. Ele estava de pé com sua calça branca e uma camiseta desbotada. Jogam conversa fora, papeavam, amigos de longa data, amigos de maio, acenderam sem presa como sempre, a mente respirava, as palavras queriam ganhar som.
Uma mulher entra, era mais velha, a pele bonita, cabelos pretos e cacheados, o corte na altura do ombro, os olhos azuis e redondos, expressivos por si só. Ele ofereceu café, ela aceitou sorrindo, repousou os olhos sobre a menina da boina, perguntou se a guria era italiana, assim, usando “guria”, Ezequiel caiu na gargalhada, respondeu pela amiga – Que nada, essa é libanesa mesmo! Ana fez cara de brava, afinal, tinha uma bisavó italiana, até tinha visto a certidão de nascimento da falecida, só não lembrava de que cidade era. O amigo a chamou de pão dura – Pão duro são os judeu! Não é que a mulher era judia? A mãe era, Helena até comia carne de porco.
Ela se aproximou de Ana – Esse rapaz ai é teu namorado ou amigo mesmo? – Amigo...amigo.. A palavra carregava consigo uma ternura imensa. – É daqui de São Paulo mesmo? Talvez tenha sido essa a pergunta que Helena fez, talvez. – Morava em Ribeirão, mas faz três anos que moro por aqui, e você nem precisa falar que é de Porto Alegre né não? O sotaque era evidente, deliciosamente expressado, Ezequiel fez piada, disse que na realidade ela era de Pernambuco. Sabe-se lá como, quando Ana se deu conta, a mulher dos olhos redondos contava-lhe a vida, sobre o amor e as mazelas da alma, que no caso possuíam o mesmo nome: Marco era chileno, olhos maduros e puxados, conheceu Helena na faculdade, a moça se encantou. – Ele era um príncipe! O sotaque dele me desorientava. Disso Ana entendia bem.
- Sabe guria, o que é viver com um homem por trinta anos e depois descobrir que era tudo mentira? Tu tens idéia de como dói? Não, ela não tinha, os olhos de Helena ficavam ainda mais azuis e o sotaque mais forte. Marco era economista, marido prestativo. – Guria, como eu ia saber? Ele chegava em casa às seis da tarde, me trazia flores, beijos e declarações, vivia comigo, sábado era passear pra lá e pra cá, como eu ia desconfiar? Ana falava pouco, algumas perguntas eram feitas apenas para Helena continuar a falar, era tanta dor. Em nenhum momento usava a expressão “ex-marido”. – Mas teu ex-marido tentou falar contigo depois que você veio pra São Paulo? – Meu marido? Tentou se fazer de vitima pro pessoal de lá, mas não deu certo não viu guria, ninguém acreditou, o único filho que mora lá ainda foi pra casa de uma amiga minha, e não fala mais com o pai. Mas esses tempos ele me mandou um email, sabe que o maldito me quebrou? Veio com uma dessas conversas que o coração dele estava cheio de arame farpado e quando ele respirava sentia arranhar tudo ali dentro, sabe guria? Ele tá largado, dizem que nem fazer a barba ele faz mais. Fazia um ano e quatro meses que Helena havia saído de casa, com a roupa do corpo, ficou com uma amiga por alguns dias até a filha levá-la para sua casa em São Paulo, onde também morava o caçula. Ezequiel distraído por essência – Mas como você descobriu tudo isso? – Pela internet, pela internet. Dizia ela mexendo a cabeça. Encontros, poesias, inúmeras mulheres, talvez um café na faculdade, ou quem sabe um motel depois, eram conversas eróticas, era contar o cotidiano para desconhecidos, por que diabos é tão mais fácil contar a vida para quem não enxerga teus olhos? Marco fugia sei lá do que, mas fugia. – Descobri a senha dele, burro, burro, achei tanta coisa guria, tanta coisa, fotos, conversas, doeu tanto, tanto, tinha até uma das namoradas dele que usava essa boininha vermelha ai, tri-bonita ela, tri-bonita. Imprimi tanta coisa, tenho rolos e rolos de arquivos, vai entender...vai entender.
Ela possuía um olhar incrédulo, parece que até hoje não entendia o motivo de tudo aquilo, no começo da conversa havia dito que adorava sotaques espanhóis, agora Ana já entendia o motivo, Helena não saia muito, vivia confinada ao quarto, a filha viajava muito, já era mais velha, o caçula doce, doce, de cabelos pretos em cachos, vivia para mãe, gostava de viver assim, era excessivamente tímido, rompeu o âmbito do personagem quando encostou a cabeça na fresta da porta – Mãe, to indo ensaiar tá? – Ta filho. Sorriso bonito.
Helena fazia arroz enquanto falava, o cheiro estava muito bom. Ana pensava o quão complicado é portar-se durante uma conversa dessas, tinha medo de falar algumas coisas, não queria que a mulher cessasse a fale, não por enquanto, sentia tudo, olhava atenta, talvez assim falasse em alto e bom tom.
- Eu não saio desse quarto guria, tenho medo aqui de São Paulo, tudo muito violento, me viciei em computador sabe? Msn, Orkut, Facebook, tudo o que tu possa imaginar, tenho mil namorados, sempre procuro um que fale espanhol sabe? Acho que é trauma. Todos moram longe, tem só um que é daqui da Paulista, já viu meus filhos na câmera, me chama pra sair sempre, mas eu não quero não guria, não quero não, aqui eu posso me arrumar, batom vermelho, salta, toda linda, e na frente dele? Sabe? Quando a coisa for mais de perto assim?
A mente de Ana borbulhava, como sempre uma sinestesia imensa a invadia, ainda não conseguia tirar de si mesma aqueles arames farpados, que no fim, devem unir a todos, uma falta de ar coletiva. Ezequiel alertou Helena que era comum naquele espaço, as pessoas enlouquecerem, o isolamento pleno, cada vez mais intenso. Comentou sobre lugares próximos, passeios, a mulher ouvia, talvez até destilasse um interesse. – Mas não me fala pra ir sozinha que eu não vou guri, levo meu filho comigo.
Curioso foi quando ela disse que sofria muito preconceito por conta do sotaque – É, fui trabalhar uma vez como acompanhante de uma velha que só falava espanhol, não suportava as empregadas, cheguei lá, não que é começaram falaram pra mim “pare de falar esse seu tu ai que irrita a gente” como assim guria? Sai de lá depois de dois meses. Depois fui procurar outro emprego, empregada, ouvi a mulher dizendo que eu tinha mais cara de patroa do que ela, resultado, não consegui nada. Vivo por aqui, faço aulas de dança, ás vezes, o caçula que diz pra eu ir, se não fico mesmo é presa no computador.
Absurdo, pensava Ana, o poder que um aparato eletrônico exerce sobre nós mesmos, reflete nossa solidão, nosso desespero e angustia, dependência pura e plena, preencher de qualquer coisa aqueles arranhões causados pelo maldito arame farpado. Sangra muito, dói demais.
As falas, olhares e gritos, giravam na cabeça de Ana, pensava em Marco, no desespero da solidão, no filhos que não lhe dirigiam a palavra, pensava em tudo, nos universos que cada um leva consisgo, e como se conectavam, como foi tudo perdido, mas por que, céus, ele precisava daquele maldito aparato eletrônico? Por que ela estava fazendo a mesma coisa? Imaginou os dois indo ao cinema, pipoca, amor é filme, eu sei pelo cheiro de menta e pipoca que faz quando a gente ama, e qual é o cheiro que fica quando destrói? Ana roia unhas compulsivamente, Ezequiel olhava às vezes, destilando uma preocupação, era seu anjo, protegia a menina, sempre, desde sempre.
- Mas guria, hoje eu superei sabe? To bem.
Ela sentia uma vontade insana de gritar - Não, não tá bem, ta tudo ruim, desculpa esse cara, ele te ama, eu sinto, vocês dois tão morrendo, se isolando, volta pra Porto Alegre, pelo amor de deus, sai dessa internet, sai desse quarto, sai desse lugar, vai embora, agora, sai correndo.
Leitor, ela não disse isso, óbvio.
- Sabe que a gente tinha plano de vir morar em São Paulo, todo mundo? Ele queria fazer o doutorado dele por aqui, ai ia morar tudo mundo junto, mas guria, ele me traiu, isso eu não desculpo, não desculpo. Até parece que se eu voltar ele não vai fazer de novo, vai sim guria, vai sim, acabou o respeito, acabou tudo.
Ana imaginou a casa em São Paulo, simples, mas cheia de ternura - Ternura ilusória Ana, ternura ilusória.
- Você nunca mais voltou pra Porto Alegre?
- Não. Eu não ia conseguir dizer não pra ele guria, ele sofre muito.
Ana respirou fundo, foi tudo pra escanteio, tudo, ela também sofre demais, ela sofre tanto.
O arroz ficou pronto, ela pegou a panela, olhou firme pra guria, e sorriu, sorriu doce – Já falei demais né guria? Conversem vocês agora que eu vou almoçar!
Ana gritava em pensamento, Insanidade pura, as pessoas vem, falam sobre a vida, contam as tristezas, discorrem sobre arames farpados, choram gritam usando de um tom doce, falam de superação sem que ela exista, são plena em suas próprias mentiras e depois vão embora, a vida delas continua, doendo, ardendo, morrendo, levam consigo seus universos, medos de aranhas ou de altura. Movimento de energia, eterno, tantos arames farpados em nós, céus.
Leitor, talvez o diálogo tenha ocorrido dessa forma, talvez você não possa nem imaginar o ritmo, o sotaque, o amor como ela falava do marido, a raiva encravada nas palavras, a tristeza, o não entender, o não entender, talvez nem Ana tenha entendido, talvez Ana tenha exagerado, afinal, tudo é poesia, tudo tem tanta dor para ela, talvez as coisas tenha sido mais simples, com menos gosto e nada de sinestesia. Ah leitor, não sei de nada.
Ezequiel beijou Ana na testa e tomaram o último gole de café.
Em silêncio.

Ana T.
Tal conto é baseado em uma idéia chamada: Contos Cruspianos, do Senhor F.
Agradeço com um café e paçoca. Pode ser?

Beijo, maio e frio.
Ana.

terça-feira, 10 de maio de 2011

en fim maio

Um pacote na mão, um doce caramelizado qualquer, o telefone toca e não atende nunca, atende, ela abaixa os olhos e desliga sem ouvir.
Um assalto, uma dor, um perigo, ela não ouviu, não deixou a voz falar.
A típica falta de ar, não sentia há tempos, tomou o café sem adoçante e não fumou seu cigarro.
Incompreensão absurda, ela não sabe o que eu passei, ela nunca me deixa falar.
Ele sempre faz a mesma coisa.
Os dois não se entendem, faz tanto tempo que não se entendem. Não se escutam, não falam da mesma pele, cada um perdido em seus universos paralelos.
Ela se arrependeu, talvez, ligou novamente, algo poderia ter acontecido, algo ruim, mas a tristeza foi tanta.
Ele não atendeu, deixou tocar inúmeras vezes, gritou palavras, imaginava o tom de voz dela, as frases monótonas e insuportáveis, ela era tão chata.
Ela não entendia, ele não atendia, sentiu raiva, tristeza, lembrou de Shakespeare e daquele tempo. Foi plena em seu universo, mas a ausência pesava vazia ao lado dela, insustentável, ela não tirava os olhos da porta de vidro, quem sabe. Não.
Ele eu não sei, ódio, raiva, punir aquela que sempre pune. Ele era assim, assim como? Assim de um jeito que nem ele sabe, não gostava de classificações.
Desligou o celular.
O número que você ligou encontra-se desligado ou fora de área.
Ela surtou, chorou sozinha no banheiro, patética. É sempre assim.
Os dois não se entendem, faz tanto tempo que não se entendem. Por que ainda existe amor? Pra doer.
Ela critica os casais alheios, mas é igual a todos eles, dependência pura, da pele do cheiro, pode até ter diminuído, mas ainda se faz presente, ainda se faz arder. Decadência extrema.
Ele eu não sei, talvez esteja tocando violão, fumando um cigarro de palha, anestesiado, pensando nela como algo cheio de tédio.
Ela não leva nada em frente, sempre sorrindo pros outros, raramente se estressa, com ele é o contrário, raramente esboça um sorriso, mínimo contato físico possível.
Os dois não se entendem, faz tanto tempo. Insistem.
Ela espera ações dele, ele eu não sei.
Ela não quer esperar ações dele, mas sempre se espera, um sorriso, um boa noite talvez, comprar um cigarro, um beijo no rosto.
Ela destila tédio.
Já sentiu tanta coisa em um espaço tão pequeno.
Silêncio pleno, afastamento necessário, sorrir.
Quem sabe um beijo, o chocolate.
Ódio. Isso é crueldade.
Ela ainda não entende, não vai entender nunca.
Vaidade e indecisão estampadas em teu corpo.
É sempre assim, ele não vai, ela fica triste, é grossa, desliga na cara, ele explode, lembra da cara feia dela, do tédio transbordando pelos olhos monótonos dela.
Será que foi tão grave?
No que consiste a gravidade?
É sempre um jogo.
Vaidade.
Provavelmente ele não vai acordar amanhã.
Ela sempre espera o dia.
Ela sempre espera qualquer coisa.
Ela sempre espera.
Sentada, rabiscando qualquer coisa que acha que é poesia.
Ele não quer saber.
Ela não quer ouvir.
É o mesmo tom sempre, não importa se é áspero ou doce, é sempre o mesmo. Igual.
Os dois não se entendem, faz tanto tempo.
Tanto tempo.
Ela não entende.
Ele, tampouco.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

meu amor

enterrei vivo meu amor pra ele agonizar até morrer.
enterrei vivo meu amor pois não pude matá-lo de vez.


- o terno
enterrei vivo
http://www.myspace.com/oterno