quarta-feira, 16 de maio de 2012

reticências contaminadas

Para ouvir ao som de: Ave, Lúcifer - Os Mutantes

contágio
nos contagiar 
com o sangue que habita
a lâmina afiada (sem qualquer afinação)
contaminar a nós, que já somos tão contaminados
espalhar a nossa angustia, o nosso amargo - o que em nós queima - o que nos tortura
sentir o sangue denso - correndo pelas veias entupidas. tentando correr - mas não consegue. denso e lento. 
arde
 
e nós, transbordando o peso
tentamos 
usar das palavras, dos gestos
para destruir 
o silêncio que sufoca

e desde quando formar sílabas
em formas de som
alteram a ausência do meu tesão?
 
penso
canso
enjoo do movimento
deito na cama e tento dormir
o gosto amargo continua 
em meus travesseiros
colchas
vivo entre lugares, uma espécie de 
limbo quente, emaranhado de tédio
e passividade

nem puta
nem santa
nem viciada
nem sóbria

percorro
recorro aos deuses 
com os olhos entreabertos

o gosto amargo é contínuo
o cheiro doce me enjoa 

o desespero não cessa
a ternura não finda

tropeço
mordisco a última pele
e adormeço.

domingo, 13 de maio de 2012

música para um domingo frio

Se Puder Sem Medo - Oswaldo Montenegro 

Deixa em cima desta mesa a foto que eu gostava
Pr'eu pensar que o teu sorriso envelheceu comigo
Deixa eu ter a tua mão mais uma vez na minha
Pra que eu fotografe assim meu verdadeiro abrigo
Deixa a luz do quarto acesa a porta entreaberta
O lençol amarrotado mesmo que vazio
Deixa a toalha na mesa e a comida pronta
Só na minha voz não mexa eu mesmo silencio
Deixa o coração falar o que eu calei um dia
Deixa a casa sem barulho achando que ainda é cedo
Deixa o nosso amor morrer sem graça e sem poesia
Deixa tudo como está e se puder, sem medo
Deixa tudo que lembrar eu finjo que esqueço
Deixa e quando não voltar eu finjo que não importa
Deixa eu ver se me recordo uma frase de efeito
Pra dizer te vendo ir fechando atrás da porta
Deixa o que não for urgente que eu ainda preciso
Deixa o meu olhar doente pousado na mesa
Deixa ali teu endereço qualquer coisa aviso
Deixa o que fingiu levar mas deixou de surpresa
Deixa eu chorar como nunca fui capaz contigo
Deixa eu enfrentar a insônia como gente grande
Deixa ao menos uma vez eu fingir que consigo
Se o adeus demora a dor no coração se expande
Deixa o disco na vitrola pr'eu pensar que é festa
Deixa a gaveta trancada pr'eu não ver tua ausência
Deixa a minha insanidade é tudo que me resta
Deixa eu por à prova toda minha resistência
Deixa eu confessar meu medo do claro e do escuro
Deixa eu contar que era farsa minha voz tranqüila
Deixa pendurada a calça de brim desbotado
Que como esse nosso amor ao menor vento oscila
Deixa eu sonhar que você não tem nenhuma pressa
Deixa um último recado na casa vizinha
Deixa de sofisma e vamos ao que interessa
Deixa a dor que eu lhe causei agora é toda minha
Deixa tudo que eu não disse mas você sabia
Deixa o que você calou e eu tanto precisava
Deixa o que era inexistente e eu pensei que havia
Deixa tudo o que eu pedia mas pensei que dava

quinta-feira, 10 de maio de 2012

poeira e Caetano

Para ler ao som de: You don't know me - Caetano Veloso

Magro e menino, talvez a compulsão pelo cigarro atrapalhasse a feição de garoto, mas não, mesmo fumando sem parar, seu rosto ainda era novo. Pele branca, cabelos loiros em cachos. Gesticulava muito, nos intervalos, destilava indiferenças. Olhos pequenos, um pouco assustados, não, não era isso, os olhares eram atentos, queriam captar toda aquela multidão e seus pequenos gestos. A iluminação exacerbada atrapalhava o azul dos olhos. Apesar das características angelicais, não parecia um anjo, era só um menino com um maço de cigarros no bolso da calça. Maço este que tinha apenas mais três cigarros, quando Pedro percebeu, o desespero o invadiu. – Aposto que não existem lojas de conveniências por aqui, muito menos botequins. Até poderia pedir cigarros para desconhecidos, mas gostava de ter seu maço em mãos, a questão ia além do gostar, era necessidade, precisava daquele contato da pele com o plástico do maço de cigarros brancos.             
Resolveu sair da multidão, com alguma dificuldade, conseguiu, logo sentou em uma calçada, estava ligeiramente ébrio, acendeu um cigarro – ainda faltam dois. Pensou. Ao seu lado um casal de mulheres trocavam carícias explícitas, qualquer moralista se indignaria, qualquer malandro de chapéu demonstraria tesão, Pedro não fez nada, talvez nem tenha reparado. Fazia tempo que Pedro não sentia. Havia mais um de três meses que não escrevia, nem pintava. Ainda conseguia ler, mas com uma freqüência bem menor do que a normal. Pedro agora gastava suas horas com pequenas coisas, pequenas e incessantes atitudes chatas, as quais eu poderia passar horas discorrendo aqui, mas são tão corriqueiras, que prefiro que o leitor as imagine.  (por pouco tempo, de preferência, afinal, são entediantes...)
 O problema não era concluir tais ações, mas sim o tempo que gastava com elas: demorava horas para ferver a água para seu chá, procrastinava o máximo que podia para escovar seus dentes. Entre essas ações, roia unhas compulsivamente, quando tentava ler mais de uma página, os dedos não agüentavam de tanto que eram mordidos e sangravam, fazendo com que Pedro levantasse de sua cama para buscar materiais para um curativo, que em poucos minutos iria arrancá-lo para voltar a atitude de auto-flagelação. De alguma forma, roer os dedos lhe trazia algum tipo de concentração.
Pedro ainda estava sentado, fumava seu último cigarro, enquanto observava o desenho das nuvens. Estava distante da cidade grande, achava que com esse afastamento, conseguiria achar alguma dose de tesão. Estava em um festival, havia se perdido de todos seus amigos, não achava justo que seu tédio os contaminasse. Depois era só tentar alguma comunicação, ou ir direto para o local onde estavam hospedados, lembrava bem o caminho, apesar daquela multidão efervescente.
Seu cigarro acabou, apesar da ausência de tesão que existia dentro de si, se interava bem com as pessoas, era simpático, sorria com freqüência. Seus amigos estavam acostumado com seus sumiços, os mais próximos sentiam algo diferente naqueles olhos. Não havia explicação plausível, estava tudo bem, sem mortes, sem grandes rompimentos amorosos, a saúde, apesar da asma contínua, estava em perfeito estado.
A moça sentou ao seu lado, reparou nas feições de menino, também estava entediada, roia as unhas compulsivamente, Pedro não a olhava, Pedro não estava ali, ou estava tão inserido naquele espaço, que não enxergava mais nada. Ana não conseguiu evitar o olhar fixo, Pedro era bonito, apesar de tão garoto. Ela notou o isqueiro na mão, o maço vazio na outra, o olhar azul perdido. Não teve dúvidas. – Quer um cigarro? Ele não respondeu, não ouviu. Ela insistiu. – Garoto, você quer um cigarro? Pedro arregalou os olhos, parecia ter saído de um sono profundo, assustado em notar que alguém estava tão próxima de seu corpo. – Desculpe, estava distraído, quero dizer, sou distraído. – Tudo bem, isso eu já notei. Mas você ainda não me respondeu, quer um cigarro? – Por favor! Ana apanhou o maço, retirou um cigarro da bolsa, acendeu e começou a fumar, com a outra mão, tirou outro maço fechado da bolsa (que era enorme, diga-se de passagem) e entregou a Pedro. – Acho que você precisa mais dele do que eu. Ele sorriu tímido e um pouco assustado, tentou parecer seguro. – A senhorita está flertando comigo? Ana riu, chegou ainda mais perto de Pedro e bagunçou seus cabelos. Tirou da bolsa uma garrafa de vodka e ofereceu ao menino dos cabelos em cachos. Beberam muitos goles dela.
 Deitados em uma cama de solteiro, a janela aberta e muito frio, Ana vestia apenas um casaco, não estavam abraçados, Pedro fumava um cigarro, a fumaça invadia o quarto, a moça logo acendeu o seu. Era uma cena bonita. Ambos olhavam para o céu. Não havia nada de romântico, não para eles. O sexo havia sido bom, o ritmo de um mesclado ao corpo do outro, sede da pele alheia. Não era mais noite, nem madrugada, o dia se aproximava aos poucos. Nenhum dos dois pregaram os olhos, nenhum segundo. Trocaram algumas palavras em meio ao gozo,  entre uma audácia e outro gole de vodka. Ela dizia – Às vezes acho que a ausência de tesão paira suspensa no ar, e tira o ar de todos aos poucos. Pedro achava interessante a frase, mas não dizia nada, fumava o penúltimo cigarro do maço que a moça havia lhe dado. Ana continuava – Sou muito pessimista, não escrevo há tempos, estou enjoada do emaranhado quente que existe em minha mente. O garoto não a achava tão cética, enxergava prosa naquele corpo. Sentiu vontade de desenhar, não por ela, por nada. Apenas sentiu a vontade em sua boca.  – Quando voltar para capital, quero ler Leminski. – Talvez filmar um cair de folhas... – Você rói unhas? – Compulsivamente. – Seus acentos me excitam. – Certamente você pontua as frases de uma maneira deliciosa. Se misturaram sem perceber, se contagiaram um do outro, contaminaram-se da saliva que transbordava o corpo. Riram enfim.
Tocava o vinil Transa de Caetano, Ana se levantou, espreguiço seu corpo branco, procurou sua roupa no chão, se vestiu sem pressa enquanto Pedro a observava e sentou sobre a cama, beijou-lhe a boca e bagunçou seus cachos – Pedro, Pedro... depois disso foi embora. Quando a porta a bateu, Pedro sorriu, sentia o cheiro da moça em meio ao lençol, em meio ao seu corpo, era gostoso e isto bastava, a textura da pele dela agradava a pele dele, era isto e nada mais. Lembrou vagamente das poucas frases que trocavam, ela falou mais, ela tinha olhos bonitos, ela havia dito para Pedro que achava seus cachos bonitos.
O garoto dormiu cansado, depois de tanto, o corpo pedia sono. Acordou tarde, os amigos já em casa, dormiam nos lugares mais diversos do quarto. Levantou, colocou um casaco, fazia muito frio, apesar de ser bem magro, gostava daquela temperatura. Lavou o rosto, encarou a face de menino no espelho, sorriu com os olhos pequenos. Conferiu se tinha um trocado no bolso e foi andar sem rumo, em busca de qualquer lugar com café e cigarros. Gostava do vento que batia em seu rosto e da corrente elétrica que percorria seu corpo, sentia. O sol de Maio o deliciava. Talvez aquela poeira suspensa no ar estivesse se desintegrando aos poucos....talvez...Pedro sentia qualquer coisa, cansaço, que seja. Não era por causa de Ana, não era por causa de nada e tinha total certeza disso. Lembrou do sexo, do arrepio, e continuou com seus passos. Andou por um bom tempo, encontrou um bar antigo, azulejo azul, senhores jogando cartas. Apanhou um maço de cigarros e pediu um café. Sentou sozinho, buscou um guardanapo, pediu uma caneta para o senhor ao seu lado e começou a misturar palavras com traços, texturas com prosa, gozo com pele, desenhava letras e sílabas.

Sentia seu corpo - sentia seus ossos – sentia qualquer coisa. Pedro enfim, sentia.
A chuva veio atípica, quase enxergava a camada de poeira se desfazer.
Eu disse, quase.

Beijos, limão e mel
Ana T.

ps: postei sem ler! faz tanto tempo que não escrevo...que estou me deliciando com isso. depois,quem sabe, eu leia as frases mais atenta. que sabe...