quinta-feira, 23 de julho de 2009

Caixa Postal

-Qual vai ser a desculpa?
-Que desculpa...eu não fiz nada, será que você não entende que o meu trabalho ocupa todo o tempo que tenho, portanto me distraí. É incrível essa tua necessidade de fantasiar histórias mirabolantes.
-Quem não entende aqui...é você...eu simplesmente não quero mais ouvir nada disso, eu não quero mais ser racional, chega.
-Quer terminar então?
-Você me traiu ontem?
-O quê? A gente não faz parte de um filme, pára de comparar a vida com a porcaria da sétima arte, será que você não consegue viver o que realmente acontece, tem que ficar em um paralelo que nem existe!
-Eu nunca te perguntei isso antes, apenas responda.
-Eu me nego a responder.
-Então pega essa aliança...e eu realmente espero que a noite de ontem tenha sido sublime, deve ter sido não é mesmo? Para você sumir o dia inteiro...e provavelmente ficar se lamentando no ombro de algum amigo teu.
-Céus, quanta bobagem, quanta loucura..a única coisa que eu fiz foi sair, cheguei em casa tarde, acordei cedo hoje..fui para o trabalho..meu celular ficou em casa...na volta, o trânsito estava insuportável por causa da chuva...e aqui estou, ouvindo as suas lamentações por algo que não aconteceu e nunca vai acontecer.
-A sua lógica me irrita, ela sempre me convenceu, sempre me sentia uma idiota depois de reclamar de algo sobre você...mas desta vez é muito diferente, você me traiu e eu sei disso, eu vou dar ênfase que nunca dei um ataque histérico de ciúme e muito menos estou dando agora...é apenas uma certeza.
-Qual foi o último filme que você viu? Closer? ou andou lendo Nelson Rodrigues novamente? Quer que eu comece a falar como eu fiz sexo com a teórica mulher...e de um tapa na sua cara? Pára com essa mania insuportável..você não é personagem de nenhum filme, você não tem coragem para fazer uma faculdade de cinema, então faça direito a tua escolha e não deixe suas frustrações atrapalharem nossa vida.
-Que vida? Que relacionamento? O que a gente é senão uma breve lembrança de um passado agradável?
-As tuas frases feitas parecem sair de um livro desses que a gente encontra nas estações de metrô.
-Pois é, elas eu aprendi bem com você...
-Eu não trai você, eu nunca trai você...será que é tão difícil entender? Por mais que você queria um bom motivo para sair por essa porta e nunca mais dar as caras, não vai ser por adultério, eu infelizmente amo você como todas as suas loucuras e manias estranhas.
-Você estava com ela, eu tenho certeza.
-Sim, eu estava.
-E ainda tem coragem de dizer que não me traiu? Com ela na história a ordem cronológica muda totalmente, creio que existe algo errado então.
-Na realidade, sim...quando eu estava saindo do escritório..ela estava na porta me esperando...
-E ai vocês foram para a sua casa e transaram a noite toda, aposto que você lembrou de mim quando acordou...resolveu chamar o Caio...para agüentar as suas lamentações e justificativas.
-Se você continuar falando assim eu realmente vou embora.
-Tira a mão do meu braço, você está me machucando.
-Eu te amo, porra!
-Tá bom...amor não tem nada haver com sexo e você sabe muito bem disso, a gente não se dá bem na cama faz tempo e nem casado a gente é.
[Silêncio.]
-Então por que você não termina comigo logo? Caramba, sempre tão presa nessa imagem que criou de mim, é capaz de que imagine até a minha respiração enquanto eu estava na cama com ela.
-Então você estava.
-Não, eu não estava, na sua imaginação eu estava.
-Eu não sei por que eu não termino com você...
[Ela esfrega os olhos, senta na poltrona, tira os óculos e coloca em cima da mesa.]
[Ana continuou:]
-Cada vez que a sua caixa postal atendia eu tinha vontade de gritar, a maldita típica falta de ar, mas por outro lado...esta foi a primeira vez que eu tive certeza, me senti aliviada, finalmente eu ia conseguir olhar para você..e gritar: chega!
-Mas se nada disso aconteceu, se ela simplesmente trocou breves palavras comigo? Por que você tem que querer tanto o sofrimento? Sua vida não é arte, não é poesia, não é cinema nem música, pára de achar que tem uma platéia esperando seus atos de filme francês, você NÃO É UMA PERSONAGEM DE UM FILME DO BERTOLUCCI.
-Desta vez, nada do que você está falando...me importa, eu sou filme, eu sou a música, eu sou o que eu quero ser, inclusive abstrata da maneira que você mais odeia, ser racional é irritante, cansei...se você realmente não fez sexo com ela na tua casa, olha para mim...e fala.
[Silêncio.]
-Não tenta me beijar, você acha realmente que eu ia conseguir te beijar? As vezes eu sinto uma certa repulsa, é como um estranho tentasse me beijar..estranho não..um conhecido...desses entediantes entende? Eu sinto tédio de você.
-Então termina comigo, é tão simples...se eu te enjôo, te dou tédio, repulsa, por que você parece tão feliz quando eu te acordo com o cigarro aceso e o suco de abacaxi com hortelã?
-Eu gosto da melodia dos teus passos, eu gosto...eu não sei do que eu gosto, e a porra do assunto não é essa, chega de falar das lembranças e da serenidade que é sorrir para você, você transou com ela?
-Ana...
[Ela altera o tom da voz.]
-Você transou com ela?
[Mãos dele coçam os olhos, tira os óculos, senta na poltrona ao lado dela.]
-Você transou com ela porra?
-Ana...
-Eu quero ouvir se você fez sexo com a Carla na tua casa, eu quero saber isto entendeu? É tão complicado assim? Fala, grita!
[A voz dele se altera demasiadamente.]
-Sim porra, é o que você quer ouvir não é? Transei com ela porra!
-Como foi?
-Você quer que isso pareça Closer, está bem...ela apareceu na porcaria daquele escritório, estava com um vestido extremamente provocante, me chamou para tomar a porra de um drink, eu bebi mais de um, mais de dez...e fomos para minha casa e eu transei com ela a noite inteira, sim..eu lembrei de você algumas vezes..e no dia seguinte...procurei o Tiago para me lamentar...
-Tão previsível...aliais..nem tanto não é? Errei..foi o Tiago e não o Caio..
[Ela falou com um tom da voz sarcástico, masoquista.]
-Agora você vai me mandar embora, vai jogar a aliança na minha cara? Eu nunca me arrependi tanto de algo que eu fiz..acordei, pensei que era vo...
-Quieto, agora não quero mais ouvir, muito menos suas explicações, é óbvio que o nosso namoro acabou..mas ele não acabou aqui, por isso..ele acabou faz muito tempo portanto..esse motivo foi como se fosse uma bela desculpa.
-Ana..vem aqui, a gente precisa conversar.
[Ela foi, o beijou na boca...beijou o pescoço...sentiu o cheiro de Carla no corpo dele, as imagens ecoavam na mente de Ana, a respiração, os toques, ela teve vontade de gritar...de se unhar e quebrar o vidro, se cortar e ver o sangue escorrendo por aquela pele branca tão diferente da cor de Carla.]
-Você é louca? Quer que a gente vá para o quarto e faça sexo? É isso?
-Não..eu não conseguiria, se não conseguia nem quando ainda fingíamos ter algo..imagina agora..faz o seguinte...vai embora. Ah, claro..eu estou mandando você embora para deixar a cena com um tom de filme francês...bate a porta..na realidade estou pensando se eu devo te dar um tapa na cara..mas acho que isto é muito Nelson Rodrigues....
-Ana..eu..sinto muito...tanto..eu..estava tão..carente...sentindo falta do teu corpo...
-Ah, já que não tinha o meu..é óbvio que você foi procurar o cheio de curvas da Carla não é? Eu não vou me rebaixar e imaginar o que vocês fizeram na cama, apesar de saber que eu vou ter insônia por causa desta cena nojenta.
-Ana...me escuta.
-Não quero não...vai embora, não quero ficar ouvindo o motivo, as racionalidades, a lógica...eu sei que a gente não fazia sexo...há um bom tempo...mas eu jamais vou me rebaixar e colocar a culpa em mim, se a gente não fazia sexo é porque eu não tinha mais tesão para isso, então..vai embora.
-Ana...
-Porra Paulo, sai daqui...você quer que eu comece a falar como eu odeio aquela vadia? O quanto eu tenho nojo dela, e o quanto eu tenho nojo de tudo o que vocês fizeram naquela cama...se eu continuar falando eu vou vomitar aqui...eu nunca fui santa, nunca escondi que me atraia por inúmeras pessoas...mas sexo é íntimo demais para fazer com quem a gente tem nojo, então sai daqui agora..eu não quero mais sentir o cheiro de perfume de quinta categoria que ela tem...vai embora, só isso.
-Ana...vem aqui.
[Ela jogou um porta retrato no chão, quebrou em inúmeros pedaços...era uma foto deles, ironia..um caco acabou cortando a mão dela, que agora sangrava...e dava uma bela cena de Nelson Rodrigues, o sangue escorrendo pela pele clara.]
-Vai embora..lembranças não vivem a eternidade quando querem pertencer a um futuro...a gente só é lembrança...nostalgia..sai daqui...você me da tédio..vai..procura a Carla..transa com ela bastante...e conta para ela...
[Ela continuava:]
-Solta o meu braço..tira a mão de mim...me larga...
[O problema não é a traição em si, e sim o ecoar dar imagens que nunca vimos em nossa mente, a respiração e até mesmo o que foi dito, escutamos tudo isso e o pior é que a nossa imaginação sempre consegue apimentar a nossa angustia, seja lá o motivo...é um certo masoquismo...o problema da traição...é que quando você estiver na cama com ele, ou com ela..vai lembrar...que aquele ser humanos ali...já fez sexo com aquela pessoa...e você vai começar imaginar novamente e perder a concentração. Tão previsível e banal, como somos tão dependentes dos corpos alheios... A Ana e o Paulo..o Paulo e Ana..fizeram sexo ali no chão...a violência e insultos apimentaram aquela relação..Ana mandou ele falar que ela era melhor do que a Carla..e Paulo mando ela gritar que só tinha atração por ele, pelo corpo dele. Óbvio que não foi algo saudável..óbvio que os cacos de vidro cortaram mais ainda aqueles dois seres, tão dependentes um do outro e tão necessariamente separáveis. Fumaram um cigarro depois do sexo, que, diga-se de passagem, foi sublime, ela se sentia em um filme...ele em uma fotografia preto e branco, o dinâmico e o estático, ali..juntos. Se eles ficaram juntos? Ah..creio que não...Paulo sai as pressas para o trabalho, a Ana bateu a porta...ele achava que estava tudo bem, que assim que chegasse na casa dela...Ana estaria sentada lendo com um cigarro na mão..e eles transariam novamente...e quando acordassem..o suco de abacaxi com hortelã daria o ar de sua graça...mas ela...assim que ele foi embora...arrumou as malas. São perfeitos demais uma para o outro...perfeição que conturba demais, não se preocupe..qualquer dias eles se encontram bêbados em uma mesa de bar, ela lendo Neruda..e ele ouvindo Toquinho...e fica tudo bem..isso se ela não resolveu desfazer as malas..Enfim..é apenas o fim.
Intensamente dependentes e necessariamente separáveis.]


ps: Está foto não é de minha autoria, achei no google.
Câmbio/Desligo.

terça-feira, 21 de julho de 2009

Eternidades Aleatórias.

-Mas carbonato de sódio existe!
-Se existe eu não sei a fórmula, ora!
-Então qual é a do bicarbonato?
-Esta aqui, olha...
-Deixa eu ver o seu caderno..
-Não, eu te mostro..odeio quando você tira as coisas da minha mão!
-Calma, só quero ver o seu caderno, não precisa ficar me olhando com essa cara...pára de bater as mãos na perna..isso demonstra o quão irritada você está.
-Então devolve o meu caderno, você não vai achar isso ai, ácido carbônico é um monoácido..já te falei isso, agora devolve meu caderno.
-Não é...é diácido, olha aqui..me empresta um lápis que eu te mostro.
-Ai, desencana...se for, se não for, deixa eu te mostrar o vídeo que eu queria vai...jájá carrega, solta esse caderno, caramba!
-Será que você não entende que cada dúvida que surge é um motivo para você relembrar mais a matéria? No meu tempo de estudo, eu poderia estar lendo qualquer matéria, caso calhasse uma dúvida sobre outra, imediatamente eu largava o que estava fazendo e procurava sanar a minha dúvida, ou melhor..meu esquecimento momentâneo...
- Tá bom vai, vou lá procurar no Google a maldita fórmula do carbonato de sódio, aproveito e vejo se o ácido carbônico é monoácido ou diácido está bem?
-Tá.
- Mas tem como você largar o meu caderno?
Silêncio.
-Tá certo, você tinha razão...ácido carbônico é diácido, ele é fraco por outros motivos e sim existe carbonato e a fórmula dele é esta...venha ver.
-Ah, falei..
-Mas aquela fórmula que você me disse sobre o acido nítrico não existe nem aqui nem na China.
- Tá, aquela não existe mesmo, errei.
-Senta aqui no chão e me ajuda com este exercício vai...
-Então me dá papel e caneta.
-Nem adianta tentar me ensinar deste jeito porque eu não aprendi assim..
-Mas você nem olhou....
Segundos depois.
-Entendeu?
-É..faz sentido...Obrigada..e este aqui?
-Mas esse está certo.
-Não ta não..olha o gabarito...
-Tô vendo, a resposta está igual a do seu caderno...
-Ah é...
Risos.
-Vou morder você depois dessa, sua lerda!
-Seu chato, vem aqui e para de falar de Química!
-Tá bom, mas eu estava certo.
-Parabéns! Quer um prêmio?
-Nossa, como eu te agüento?
Sorriso.
Ela o beijou com os olhos e com os lábios e ficaram deitados no chão juntos com os livros, falando de tantas outras banalidades e fazendo daquela manhã mais uma eternidade aleatória, com o som sereno das conversas sem pressa que ilustram dias como este: irracionalmente memoráveis.