terça-feira, 22 de março de 2011

"São Paulo é um cinzeiro."

Eu não tinha mais unhas pra roer, as cutículas sangravam, ardiam, chorava por tudo e ao mesmo tempo pela ausência de motivos plausíveis, chorava até soluçar, todos me encaravam, alguns arregalavam os olhos assustados, destilavam um carinho estranho por desconhecidos perdidos, outros expressavam um desdém, - talvez esteja drogada, com esses olhos, essas tatuagens, certamente está drogada, sentada no meio da calçada, acuada, aposto que andou cheirando por ai.
Não, eu não estava drogada, não andei injetando, faz tempo que estou limpa, estava anestesiada, não sentia mais nada, eu não senti nada, eu não senti nada, eu não senti nada, eu não sinto nada, eu não senti nada, bocas, lábios, a língua procurando a outra, toques, textura, eu não sentia nada, tesão enlatado, anestesia sinestésica.
Eu chorava tanto, com os braços abraçava minhas próprias pernas, eram sete da tarde na Avenida Paulista, não escutava nada além das buzinas-buzinando-gritando-pessoas-andando-sem-rumo-perdidas-multidões-indigestas-medos-ambulantes-fantasamas-sussurros-gritos-reticências- eu não queria mais reparar em nada disso.
Teu abraço apertado no meio da rua, o cheiro da tua camisa branca limpa, o teu cheiro limpo, teus olhos vermelhos de tanto chorar, cabelos loiros-e-tão-desarrumados, as buzinas buzinando nos meus ouvidos e eu não conseguia escutar o que tua boca falava, talvez não falasse nada além de silêncio, teus braços abraçavam meus ombros, me protegiam, e era quase seis da tarde, estávamos ilhados, o metrô estava lotado, os carros parados, eu chorava me escondendo em teu peito, as ambulâncias insistiam em fazer da minha dor banal, diante de tanta desgraça-e-miséria, você perguntava o que estava havendo, você estava desesperado, você sabia o que estava havendo, você sabia que não sabíamos o que estava havendo, ausência de sentidos, confusão, medo, choro entalado na garganta, ciúme, hipocrisia, hipocrisia, tanta hipocrisia, não era tua nem minha, não era nossa, a gente só queria a tua cama pequena, os passarinhos lá fora, um fumo e o Cartola cantando, a gente só queria qualquer coisa que não fosse essa angustia, essa cidade doida cheia de pessoas doentes-loucas-apressadas-sórdidas morrendo por ai, mas querendo acreditar que ainda tem muito pra viver.
E atravessamos a rua, e eu ainda tentava gritar mais alto que todas as ambulâncias juntas, eu gritava que estava cansada, cansada, que não queria mais ser assim, que não queria mais sentir isso, que não queria mais escrever, eu estava cansada de mim, de todas as manias, as pseudo-loucuras-criadas-para-suportar-uma-normalidade-medíocre-e-que-destilava-monotonia, eu estava cansada de todos os meus contos cheios de pessoas frustradas, desencantadas, presas e apaixonadas por qualquer coisa, você apertava meu rosto contra seu peito, segurava a minha mão com medo que eu me soltasse e ficasse ali parada, no meio da rua, esperando um carro me quebrar inteira, mas você sabe que eu não tenho coragem pra isso.
Nos despedimos, eu chorava, você chorava, - você me faz sentir alguma coisa ainda.você não me anestesia. você me aproxima da lucidez e da loucura. – eu sinto com você, eu sinto por você, eu sinto tesão e dor, sinto minha pele arrepiando com a tua língua, eu sinto, eu não quero parar de sentir. Eu fugi do teu abraço, e você perdeu o ônibus, e você me beijou, e eu te beijei, e você foi embora, eu fui embora, eu fui andando, e eu parei, e fiquei olhando pra trás, vendo a tua ausência, eu fiquei parada tanto tempo, tanto tempo, tanto tempo, procurando fios loiros de cabelos desarrumados, procurando olhos vermelhos de tanto chorar, e se você aparecesse?
Andei tonta, você rodopiando no meu corpo, na minha mente, dei a volta no quarteirão, racionalidade besta, tive vontade de me picar, segurei as pontas, senti tudo vago, uma zonzeira, eram quase sete da noite na Avenida Paulista, a cidade está louca, o Caio já dizia, e eu sei, e você sabe, e aquele maldito conto ecoando na minha cabeça “Não temos culpa, tentei. Tentamos.”, o nome era Anotações de um Amor Urbano, ótimo nome, ótimo nome, chorar, chorar, às cinco da tarde estávamos sentados no vão do MASP, eu lia o conto pra você, pros teus olhos, anotações de um amor urbano, era um amor urbano, somos um amor urbano, um cara parou ali na nossa frente. – oi casal, gostam de humor inteligen.... eu nem deixei o cara terminar. – seguinte cara, não tenho nada aqui. – porra, vocês são tão paulistanos. Porra, o cara me quebrou, eu não era paulistana, mas estava agindo exatamente como aquela multidão atravessando a rua em um dos sinais da Consolação, - porra cara, é só um dia difícil, uma energia pesada no ar, entende? – Entendo, entendo. Saiu andando, entende porra nenhuma, entende mais do que, mais do que você.
Eram sete e trinta e dois na Avenida Paulista, noite, vento, eu sentada chorando, o metrô ainda estava lotado, a cidade está louca, eu não agüentava mais chorar, achei que fosse vomitar, tentei levantar, cai, levantei, fui andando, desci a Augusta, três doses de pinga, qualquer pinga, a mais barata, ventava, eu não queria me picar, preferi o álcool, menos prejudicial, prezando por uma vida saudável-medíocre-sem-sentir-sem-tesão, mais uma dose, bêbada, lendo Caio, sem nada no estômago, sem tua camiseta branca e limpa, sem teu cheiro de camiseta branca e limpa, o metrô já estava menos lotado, o digital marcava oito e trinta e três, andando caindo, pessoas me olhavam tão feio, foda-se, entrei na estação, não tinha grana no bilhete único, juntei as moedas, comprei um bilhete, entra no metrô, cheiro de álcool em mim, desce no Paraíso, pega sentido Jabaquara e desce na Santa Cruz, pega ônibus, lotado, lotado, eu bêbada, cheirando a pinga barata, chorando, rindo, lendo em voz alta o conto que eu fui personagem, anotações de um amor urbano, pior de tudo é que não é conto, por um segundo até pensei que fosse, bêbada.
Agora são onze e cinqüenta e três, tomei um banho quente quando cheguei, vomitei, não vou comer, não tem nada pra comer, não me piquei e nem cheirei, dormir sem você, acordar sem você, bem brega e bem babaca, lembrar que tem que encher o bilhete único amanhã, não esquecer, deitar, virar de um lado pro outro e não dormir, sonhos perturbados, que sonhos? Pesadelos, falar teu nome durante a noite, está tudo bem, não tem motivos para o desespero, apesar que o riso excessivo demonstra algo estranho, quero tua camisa branca e limpa, agora, agora não dá, já passou da meia noite, não tem mais metrô. Eu falo em voz alta - “Não temos culpa, tentei. Tentamos.” Agora eu vou dormir sem sonhar sem sentir.


Ana T.


[foto: http://www.flickr.com/photos/rafael_paixao/5239722243]

sem mais.

quarta-feira, 16 de março de 2011

ternura e remédio.

Metrô lotado, a cidade está cinza (pra variar), minha tosse está pior, as pessoas gritam, às vezes paira um silêncio amedrontador, acho que estou com febre, alguém lê qualquer coisa sobre auto-ajuda, me vem um desânimo acompanhado pelo gosto de remédio. Percebo que o ar condicionado está desligado, “É tudo tão vago como se fosse nada”. Acho que é isso, Caio Fernando Abreu, gosto muito dele. Dormi na tua casa ontem, foi tão conturbado, tudo, não sabia se queria ir, fiquei parada te olhando, senti vontade de chorar, entrei no ônibus bem no último instante, você me olhou sem surpresa, o caminho eu não me lembro, mas foi muito rápido. A conversa ecoa na minha mente agora, gosto de pensar em como suas falas interferem no meu cotidiano, meu cotidiano, meu universo, meu mundo, meu. E como o tempo transforma a importância que dou para as palavras que saem da tua boca.
Não é bem o tempo, minhas, digo, nossas transformações que são acompanhadas pelo tempo. Enfim, tuas frases interferem diretamente na minha vida, hoje de uma maneira mais contundente do que há tempo, tuas palavras rasgam alma. Apesar de brega, é exatamente isso.
Tua casa, me senti bem, teus olhos destilavam monotonia, eu não comentei, senti fome e frio e calor. Senti vontade do teu sexo, da tua boca. Estava com febre, havia perdido a fome, deitou na cama comigo, senti tua saliva, tua pele quente, tua língua quente, eu não tinha muitas forças. Tomei um chá, um vento gelado me fez tossir, você queria destilar uma indiferença, mas tuas mãos sobre o meu rosto negavam qualquer vontade racional. – Vamos dormir? Você disse.
Tomei meus remédios ouvindo tua crítica sobre minha essência hipocondríaca, deitei na sua/nossa/tua cama pequena, e como esperado, a noite foi conturbada, não achava maneira de dormir, quando dormia, acordava, atrapalhei teu sono, teus sonhos, me sentia quente, não tinha ar, abri os olhos sem vontade, tuas mãos sobre meu rosto, tuas mãos sobre minha testa, teus olhos estava fechados, tuas mãos me apertavam contra seu peito, tive vontade de gritar as mais tolas declarações, mas não tinha fôlego.
Você...dormindo...cuidou do meu sono, da minha febre, do meu corpo, da minha alma. Enfim dormi algumas horas, acordei com o cheiro típico do teu café.
Fui embora com resquícios da tua frieza, mas com doses exageradas de sua ternura insana e lúcida.

Ana T.

terça-feira, 1 de março de 2011

Quinta-feira

- Oi.

- Oi.

- Mudei meu nome.

- Legal.

- Agora é Brisa.

- Leve.

- Mudei meu rosto.

- Que brisa.

- Agora é Leve.

- Mudei minha alma.

- É bom?

- Sinestésico.

- Mudei meu beijo.

- Eu percebi.

- Você.

- Sim.

- Eu.

- Gosto tanto.

- Mudei minha pele.

- Textura.

- Mudei de espaço.

- Pra onde?

- Rua de cima, Rua da Saudade, 175.

- Te visito lá.

- Acabou a luz, mas tem muitos espelhos.

- Que bom.

- As paredes são em prosa, a porta em poesia.

- E teus cachos?

- De amora.

- Acho que vou embora.

- Pra lá.

- Mistura, desmancha no ar.

- Marx.

- Foucault.

- Me perdi.

- Em mim.

- É sempre assim.

- Que boba.

- Quem é você?

- Sou eu.

- Clichê.

- Medrosa.

- Ai, que audácia.

- Ironia sem obter sucesso.

- Sucesso.

- Palavrinha corporativa.

- Empresa, executivo.

- Ah..equipe...normas.

- Entrevista.

- Você se considera ativo?

- Babaca.

- Hipócrita.

- É isso!

- O que?

- Eu tenho que ir pra uma entrevista.

- Vai lá!

- Eu vou pular em uma piscina de hipocrisia.

- Oh drama, vida cruel.

- Brisa.

- Leve.

- Beijo.

- Boa entrevista.

- Até.

- Te vejo no espelho.

Ana T