Para ler ao som de: You don't know me - Caetano Veloso
Magro
e menino, talvez a compulsão pelo cigarro atrapalhasse a feição de garoto, mas
não, mesmo fumando sem parar, seu rosto ainda era novo. Pele branca, cabelos
loiros em cachos. Gesticulava muito, nos intervalos, destilava indiferenças.
Olhos pequenos, um pouco assustados, não, não era isso, os olhares eram
atentos, queriam captar toda aquela multidão e seus pequenos gestos. A iluminação exacerbada atrapalhava o azul
dos olhos. Apesar das características angelicais, não parecia um anjo, era só
um menino com um maço de cigarros no bolso da calça. Maço este que tinha apenas
mais três cigarros, quando Pedro percebeu, o desespero o invadiu. – Aposto que
não existem lojas de conveniências por aqui, muito menos botequins. Até poderia
pedir cigarros para desconhecidos, mas gostava de ter seu maço em mãos, a
questão ia além do gostar, era necessidade, precisava daquele contato da pele
com o plástico do maço de cigarros brancos.
Resolveu
sair da multidão, com alguma dificuldade, conseguiu, logo sentou em uma
calçada, estava ligeiramente ébrio, acendeu um cigarro – ainda faltam dois.
Pensou. Ao seu lado um casal de mulheres trocavam carícias explícitas, qualquer
moralista se indignaria, qualquer malandro de chapéu demonstraria tesão, Pedro
não fez nada, talvez nem tenha reparado. Fazia tempo que Pedro não sentia. Havia
mais um de três meses que não escrevia, nem pintava. Ainda conseguia ler, mas
com uma freqüência bem menor do que a normal. Pedro agora gastava suas horas
com pequenas coisas, pequenas e incessantes atitudes chatas, as quais eu
poderia passar horas discorrendo aqui, mas são tão corriqueiras, que prefiro
que o leitor as imagine. (por pouco
tempo, de preferência, afinal, são entediantes...)
O
problema não era concluir tais ações, mas sim o tempo que gastava com elas:
demorava horas para ferver a água para seu chá, procrastinava o máximo que
podia para escovar seus dentes. Entre essas ações, roia unhas compulsivamente,
quando tentava ler mais de uma página, os dedos não agüentavam de tanto que
eram mordidos e sangravam, fazendo com que Pedro levantasse de sua cama para
buscar materiais para um curativo, que em poucos minutos iria arrancá-lo para
voltar a atitude de auto-flagelação. De alguma forma, roer os dedos lhe trazia
algum tipo de concentração.
Pedro
ainda estava sentado, fumava seu último cigarro, enquanto observava o desenho
das nuvens. Estava distante da cidade grande, achava que com esse afastamento,
conseguiria achar alguma dose de tesão. Estava em um festival, havia se perdido
de todos seus amigos, não achava justo que seu tédio os contaminasse. Depois
era só tentar alguma comunicação, ou ir direto para o local onde estavam
hospedados, lembrava bem o caminho, apesar daquela multidão efervescente.
Seu
cigarro acabou, apesar da ausência de tesão que existia dentro de si, se
interava bem com as pessoas, era simpático, sorria com freqüência. Seus amigos
estavam acostumado com seus sumiços, os mais próximos sentiam algo diferente
naqueles olhos. Não havia explicação plausível, estava tudo bem, sem mortes,
sem grandes rompimentos amorosos, a saúde, apesar da asma contínua, estava em
perfeito estado.
A
moça sentou ao seu lado, reparou nas feições de menino, também estava entediada,
roia as unhas compulsivamente, Pedro não a olhava, Pedro não estava ali, ou
estava tão inserido naquele espaço, que não enxergava mais nada. Ana não
conseguiu evitar o olhar fixo, Pedro era bonito, apesar de tão garoto. Ela
notou o isqueiro na mão, o maço vazio na outra, o olhar azul perdido. Não teve
dúvidas. – Quer um cigarro? Ele não respondeu, não ouviu. Ela insistiu. –
Garoto, você quer um cigarro? Pedro arregalou os olhos, parecia ter saído de um
sono profundo, assustado em notar que alguém estava tão próxima de seu corpo. –
Desculpe, estava distraído, quero dizer, sou distraído. – Tudo bem, isso eu já
notei. Mas você ainda não me respondeu, quer um cigarro? – Por favor! Ana
apanhou o maço, retirou um cigarro da bolsa, acendeu e começou a fumar, com a
outra mão, tirou outro maço fechado da bolsa (que era enorme, diga-se de
passagem) e entregou a Pedro. – Acho que você precisa mais dele do que eu. Ele
sorriu tímido e um pouco assustado, tentou parecer seguro. – A senhorita está
flertando comigo? Ana riu, chegou ainda mais perto de Pedro e bagunçou seus
cabelos. Tirou da bolsa uma garrafa de vodka e ofereceu ao menino dos cabelos
em cachos. Beberam muitos goles dela.
Deitados
em uma cama de solteiro, a janela aberta e muito frio, Ana vestia apenas um
casaco, não estavam abraçados, Pedro fumava um cigarro, a fumaça invadia o
quarto, a moça logo acendeu o seu. Era uma cena bonita. Ambos olhavam para o
céu. Não havia nada de romântico, não para eles. O sexo havia sido bom, o ritmo
de um mesclado ao corpo do outro, sede da pele alheia. Não era mais noite, nem
madrugada, o dia se aproximava aos poucos. Nenhum dos dois pregaram os olhos, nenhum
segundo. Trocaram algumas palavras em meio ao gozo, entre uma audácia e outro gole de vodka. Ela
dizia – Às vezes acho que a ausência de tesão paira suspensa no ar, e tira o ar
de todos aos poucos. Pedro achava interessante a frase, mas não dizia nada,
fumava o penúltimo cigarro do maço que a moça havia lhe dado. Ana continuava –
Sou muito pessimista, não escrevo há tempos, estou enjoada do emaranhado quente
que existe em minha mente. O garoto não a achava tão cética, enxergava prosa naquele
corpo. Sentiu vontade de desenhar, não por ela, por nada. Apenas sentiu a
vontade em sua boca. – Quando voltar
para capital, quero ler Leminski. – Talvez filmar um cair de folhas... – Você rói
unhas? – Compulsivamente. – Seus acentos me excitam. – Certamente você pontua
as frases de uma maneira deliciosa. Se misturaram sem perceber, se contagiaram
um do outro, contaminaram-se da saliva que transbordava o corpo. Riram enfim.
Tocava
o vinil Transa de Caetano, Ana se levantou, espreguiço seu corpo branco, procurou
sua roupa no chão, se vestiu sem pressa enquanto Pedro a observava e sentou
sobre a cama, beijou-lhe a boca e bagunçou seus cachos – Pedro, Pedro... depois
disso foi embora. Quando a porta a bateu, Pedro sorriu, sentia o cheiro da moça
em meio ao lençol, em meio ao seu corpo, era gostoso e isto bastava, a textura
da pele dela agradava a pele dele, era isto e nada mais. Lembrou vagamente das
poucas frases que trocavam, ela falou mais, ela tinha olhos bonitos, ela havia
dito para Pedro que achava seus cachos bonitos.
O
garoto dormiu cansado, depois de tanto, o corpo pedia sono. Acordou tarde, os
amigos já em casa, dormiam nos lugares mais diversos do quarto. Levantou,
colocou um casaco, fazia muito frio, apesar de ser bem magro, gostava daquela
temperatura. Lavou o rosto, encarou a face de menino no espelho, sorriu com os
olhos pequenos. Conferiu se tinha um trocado no bolso e foi andar sem rumo, em
busca de qualquer lugar com café e cigarros. Gostava do vento que batia em seu
rosto e da corrente elétrica que percorria seu corpo, sentia. O sol de Maio o
deliciava. Talvez aquela poeira suspensa no ar estivesse se desintegrando aos
poucos....talvez...Pedro sentia qualquer coisa, cansaço, que seja. Não era por
causa de Ana, não era por causa de nada e tinha total certeza disso. Lembrou do
sexo, do arrepio, e continuou com seus passos. Andou por um bom tempo,
encontrou um bar antigo, azulejo azul, senhores jogando cartas. Apanhou um maço
de cigarros e pediu um café. Sentou sozinho, buscou um guardanapo, pediu uma
caneta para o senhor ao seu lado e começou a misturar palavras com traços,
texturas com prosa, gozo com pele, desenhava letras e sílabas.
Sentia seu corpo - sentia seus
ossos – sentia qualquer coisa. Pedro enfim, sentia.
A chuva veio atípica, quase enxergava a camada
de poeira se desfazer.
Eu disse, quase.
Beijos, limão e mel
Ana T.
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