sábado, 30 de maio de 2009
Memórias Perdidas. [ Primeira parte. ]
- Que horas são?
Perguntava Lídia um pouco tonta, sem nenhuma noção de tempo e espaço.
-Três da tarde.
Respondia João com seu típico olhar sereno.
-Meu Deus! Preciso ir embora, perdi minha aula de teatro, o Caio vai me matar novamente.
-Toma um café, come alguma coisa, enquanto isso eu ligo para ele e aviso.
As palavras de João eram inúteis, a moça dos cabelos pretos já se trocava destilando pressa e uma certa irritação ao alheio.
Em frações de segundos já estava com sua camiseta vermelha e a calça desbotada bem justa, o cabelo precisava apenas do tocar de suas mãos e já estava impecável, era liso e curto, na altura da nuca, Lídia procurava seus óculos insistentemente e quando se deu conta, estavam nas mãos de João, que com um sorriso de lado observava aquela excêntrica mulher.
Ela se aproximou e em um gesto um pouco rude, pegou seu pertence, escovou seus dentes enquanto observava aquele moço de pulso fino através do reflexo do espelho, ela tocou em seus próprios cabelos, pegou sua bolsa, e beijou João no rosto, ele a abraçou forte e fechou a porta.
Lídia estava muito magra, não tinha um cotidiano, uma rotina, vivia na casa dos aleatórios, fumava compulsivamente e parecia perdida, nos olhares, nos sorrisos das pessoas com que estava, sempre olhando para o nada, como se estivesse procurando alguém.
E como de praxe, era exagerada, destilava exageros em toda parte, não, ela não perdeu a aula de teatro, chegou alguns minutos atrasadas e Caio, o diretor da peça, não deu a mínima quando a moça abriu a porta, mas se irritou com aquela mania.
- Lídia, por favor, o cigarro aceso aqui não.
Ela acatou seu pedido em segundos, com um pedido de desculpa expresso pelo olhar, apagou o cigarro e sentou-se com todos na roda, ali ela se encontrava e por isso era a única coisa que levava a sério, o resto era silêncio.
Se existia uma pessoa em que Lídia admirava era Caio, ele tinha seus trinta e poucos anos e seu um jeito gélido de ligar com seus atores, era bom na retórica e apesar da aparência séria, um sorriso contradizia aquele olhar de desprezo pelos outros.
Ela não sabia o motivo, mas realmente gostava daquele moço, mesmo que os diálogos fossem tão escassos, ela a encarava, a provocava.
E ali, naquela roda, ficaram horas, discutindo textos, idéias e inventando personagens, características, estavam mesmo é reinventando a vida de cada um, naquele espaço eles poderiam ser a essência.
Após duas horas era o fim, pelo menos aquele fim, todos saíram, se despediram e voltaram ser a estética vazia que eram, Lídia levantou sem pressa, olhou no relógio e constatou que eram seis horas e trinta e três minutos, colocou seu tênis que estava aleatoriamente em algum canto, apanhou sua bolsa e saiu, sem nenhum despedida efusiva.
Acendeu um cigarro assim que colocou os pés na rua, fazia frio e ela estava sem blusa como previsto, era um entardecer típico paulistano, as luzes davam o som para aquelas ruas cheias de caos, diálogos sem sentido eram escutados, algumas palavras, tantas histórias e Lídia com aquele mesmo olhar fixo, procurando o eterno e o efêmero.
Havia largado a faculdade de Direito no ano anterior, tinha 21 anos e fazia um curso pré-vestibulando para entrar em Artes Cênicas, porém com o passar das estações já não sabia mais qual era a sua escolha, freqüentava as aulas como alguns dos falsos católicos que freqüentam a missa, a moça escolhia as aulas, afinal já não sabia o que ocorreria no final daquele ano.
Resolveu naquele dia assistir uma palestra de Sociologia que teria às 8 horas, o lugar era próximo, apenas alguns minutos e já estaria lá, não via aquele ambiente há pelo menos três ou quarto dias.
Chegou bem adiantada, subiu as escadas, colocou Crime e Castigo para guardar a sua carteira, bem na frente, pois aqueles óculos já não melhoravam sua visão, a sala ainda estava vazia e aproveitando para fugir das futuras perguntas sobre a sua ausência, desceu as escadas com pressa e em meio a distração percebeu um moço que fazia o sentido oposto ao seu, o olhar de Lídia não estava mais procurando, ele ficou fixo naqueles olhos aleatórios que passaram como uma fração de segundo.
Enquanto o moço claro continuava a subir, a menina o acompanhava com seus olhos e após um suspiro os olhos esverdeados de Lidia já estavam perdidos, desceu as escadas sem entender a fissura por aquele estranho que nem o rosto conseguiu enxergar direito e procurou um lugar mais tranqüilo.
Achou, encostou-se a parede, pegou um cigarro na bolsa, procurava seu isqueiro sem paciência.
- Porra, onde está essa porcaria?
Exclamava sozinha.
Procurou nos bolsos, mais uma vez na bolsa, e nada, perto dela não existiam muitas pessoas e ela não estava expressando vontade de reproduzir sons até que ela escutou uma voz baixa e abafada falando com timidez:
- Isto é seu, garota?
O olhar de Lídia parou, voltou-se para aquela voz e deparou-se novamente com aquele moço, o que havia encontrado nas escadas, não conseguia responder, era como se olhasse para ela mesma, pediu pela racionalidade e ela lhe deu algumas palavras.
- É...eu...estava procurando ele agora mesmo.
- Acho que você deixou cair na escada.
- Obrigada.
Ele acenou com a cabeça e saiu, parecia tão triste, mas ao mesmo tempo sereno, Lídia não entendia o que a desconcertava naquele moço, era pequeno, silhueta magra e cabelos pretos, cachos desleixados, e andava em uma melodia ainda não identificada.
- Espera moço!
Ezequiel não esperava por aquela voz ecoando em sua mente, parou de andar e a encarou com os olhos esperando alguma fala.
- Você vai ficar para palestra também ou nem faz idéia do que eu estou falando?
Ele riu, um riso doce, sereno, parecia mesmo que quem ria eram seus olhos, quem se expressava era seus olhos.
- Eu trabalho aqui moça.
- Ah, desculpa, digamos que a minha freqüência aqui está se tornando um pouco rara, você trabalha no pedagógico?
- Não, não...sou professor mesmo.
Lídia sentiu uma tontura, uma falta de ar, diversas vozes ecoaram em sua mente: professor...professor.... Colocou as mãos sobre os olhos e tentou acordar.
- Você está bem?
Perguntava ele sem esboçar uma reação demasiadamente preocupada.
- Sim... acho que estou com fome.
Antes de o deixarele completar sua última frase ela continuou:
- Me desculpa, não deveria ter tentando adivinhar quem você é.
- Não, tudo bem, com essa minha aparência de “gente séria” é normal a tua confusão, quer tomar um café e comer alguma coisa?
- Quero sim!
Lidia definitivamente não era assim, era antipática, fria e detestava pessoas demasiadamente doces, pelos menos assim ela achava que era.
Enquanto eles andavam em um silêncio confortável, os olhos de Lídia estavam nos olhos de Ezequiel, e os olhos de Ezequiel eram esquivos aos de Lídia.
O cigarro e o isqueiro foram esquecidos no chão assim como a máscara de cada um daqueles seres.
Era como andar do lado de um amigo antigo, de um amor mais antigo ainda, aqueles que a gente escreve para eternizar, já que não vão ser concretos pelo menos enfeitam as páginas da nossa adolescência.
Em um momento de impulso, Lídia parou bruscamente de andar, segurou as mãos de Ezequiel e encarou-o visivelmente pela primeira vez.
- Moço, não me acha uma louca mas eu realmente te conheço de algum lugar, isso de maneira nenhuma é um flerte ou algo parecido, mas eu estou extremamente conturbada com essa situação apesar do silêncio estar confortante.
Ele sorriu, desta vez com os lábios, não largou as mãos de Lídia, apenas segurou-as com mais intensidade, chegou bem próximo dela e a abraçou, um abraço sem pressa, com o corpo inteiro, ela não entendia, o perfume dele fazia parte do seu cotidiano que um dia tinha existido, a textura da pele dele estava em alguma das suas rotinas, o seu coração estava disparado e ela finalmente se entregou aquele abraço, de corpo inteiro.
E durou frações de segundos eternas, os olhos dela não olhavam mais para lugar algum, estavam fechados e os dele também, era a pura essência.
Um movimento brusco tirou a poesia da cena.
- Desculpa Lídia, eu realmente preciso ir, já deve ser quase oito horas e eu ainda não terminei de preparar uma aula.
Disse ele, já longe do corpo dela.
O silêncio disse por Lídia, enquanto ele se afastava, as questões dela tendiam ao infinito.
Ela ficou parada, vendo a realidade ir embora até que o seu próprio nome começou ecoar em sua mente: Lídia, Lídia, Lídia.
- Como ele sabe meu nome?
Exclamava a moça.
Correu para encontrá-lo, subiu as escadas em uma velocidade extrema, de andar em andar até deparar-se com a porta fechada, viu pela pequena janela, uma sala lotada com alunos, a lousa com alguns poucos números e ele com aqueles olhos serenos e tristes.
Os olhares se cruzaram por um único instante, ela não queria atrapalhar a aula dele, estava conturbada e sem alicerces, sentou no chão enquanto a voz de Ezequiel ecoava na sala e fora dela.
Ela queria roubar os olhos dele, e não só os olhos.
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Um comentário:
Mas que hipnotizante! *-*
Quero a continuação!
Que narração sutil, serena e, como você diz, melódica!
Achei lindo!
Quero a continuação!
Seu fascínio com o nome Ezequiel é compreensível!
Um nome lindo.
Beijos com carinho.
Saudade.
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